
Demóstenes Torres
Goiás e Tocantins eram uma só unidade da federação quando assumi o cargo de promotor de justiça. Fui mandado para uma região lindíssima, que fica exatamente na divisa que a Assembleia Constituinte criou em 1988 para os dois Estados. Teve época em que era o único do Ministério Público de Formosa, no Entorno Norte do Distrito Federal, a meados do que hoje é o Tocantins. Trata-se de porção de terra maior que a da Suíça, com seus 41.285km². Saí de lá para outra área imensa e imensamente linda, equivalente à Bélgica em metros e beleza, no goiano Vale do São Patrício. Telefone? Só o fixo do Fórum… quando funcionava. Assessores? Nem alguém para datilografar – ao dicionário, moçada, porque esse verbo é tão de priscas eras quanto a expressão priscas eras.
Relembro detalhes pessoais para contextualizar a choradeira de alguns nos debates acerca do juiz das garantias (JG), implantado no Código de Processo Penal (CPP) pela Lei 13.964/2019 e suspenso pelo Supremo Tribunal Federal ao menos até o próximo agosto. A que garantias se refere? Às constitucionais. E a qual juiz? Um que atue no caso enquanto houver investigação preliminar. Outro magistrado, sem contato com o inquérito e seus elementos não submetidos ao contraditório, assumirá após o recebimento da denúncia ou queixa, como prevê o artigo 3º-C do CPP.
Os contrários alegam aumento de custos, pois teriam de ser contratados milhares de profissionais. Ora, esse quantitativo é falado há muito tempo, desde que eu prestava concursos no início dos anos 1980 se critica a defasagem nas comarcas. A grita é vã. Após a eventual decisão favorável do STF, a criação do JG não vai gerar demanda maior que a reclamada no século XX inteiro e neste início de XXI. Se antes da invenção de celular, internet, aplicativo e outras maravilhas da tecnologia oficiei em territórios maiores que países médios da Europa, hoje está bem mais fácil e rápido.
Durante a pandemia, o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia trabalharam no modo virtual e, cada qual a seu estilo, no modo turbo. Ou seja, quem se arrastou no tartaruguismo é porque no presencial vem sendo lento desde o berçário. Ninguém era cascavel-chifruda (a cobra mais rápida do mundo) e se tornou caracol de jardim. O marcha lenta nasce bicho-preguiça e se aposenta como o bicho preguiçoso que sempre foi, a 0,020km/h no rumo do serviço.
Google Meet, Zoom e outras salas de reuniões baratearam a universalização da justiça – no caso delas, gratuitas. Gasto zero também em combustível, aluguel de veículo, motorista. Economia de tempo e paciência. Nada de engarrafamento, atropelamento, poluição das ruas, brigas no trânsito. Pode até acordar uma hora mais tarde. Ou duas. Ou ler mais. Ou zapear. Enfim, aproveitar o dia. Ou a noite. O conforto e a praticidade foram tamanhos que as audiências remotas sobreviveram ao coronavírus em grande parte do país.
Uma minoria esquálida argumenta que a honestidade do julgador veda a contaminação do processo pela fase inquisitorial. Autópsia veloz dessa falácia: é desnecessário dar por impedido um magistrado correto – e, inclusive por ser correto, ele se dá por impedido ao notar que é o caso. Não é uma improvável desconfiança que gera a necessidade de existir o JG, é a democracia.
Há quem considere imperioso que, a cada ato, o JG apareça em carne, osso e gravata. Para essa visão nublada, seria desumanidade acompanhar somente por vídeo as piscadelas do suspeito. Batizei tal absurdo de “Síndrome da Maria Bethânia”, pois o homem da beca teria de olhar nos olhos o que faz o moço pego no beco. O raciocínio em tudo se aproxima daqueles que combateram as peças datilografadas (após olhar no Pai dos Sábios, você se familiarizou com a máquina de escrever) e exigiam os autos escritos pelo juiz a próprio punho. O sujeito passa dia e noite vidrado em telas, porém as considera inservíveis para entrevistar alguém levado pela polícia.
Digamos que o JG tenha de se deslocar para garantir os direitos constitucionais de alguém noutra comarca. Ótimo. A atuação em seu local originário não será prejudicada. Nos meus saudosos tempos de promotor no interiorzão de meu Deus, adivinhe qual veículo havia à disposição do Ministério Público? Acertou quem respondeu “nenhum”. Vim ter carro depois dos 30 anos de idade. E o MP? Só ao assumir como procurador-Geral de Justiça, já na segunda metade da década de 1990, destinei veículos a todas as promotorias. E a famigerada trafegabilidade? Nem 1% das estradas daquele torrão era asfaltado. Lama no inverno, poeira no verão, buraco nas estações de Vivaldi. Antes de você se perguntar como atendia àquela Suíça inteira, informo e parabenizo: a Polícia Militar gentilmente dava carona ao jovem órgão ministerial – em retribuição, quando fui secretário de Segurança Pública, comprei 2.165 viaturas, parceria dos governos federal e estadual.
Ainda que o JG se desloque entre as comarcas, não atrapalhará a sua rotina no gabinete originário. Por piores que estejam as rodovias, ficam longe daquelas tocantinenses pré-independência. Por menos tecnologia que o Judiciário possua, e é o poder mais moderno do Brasil, o juiz tem no mínimo um aparelho com tela touch screen, capaz de participar de qualquer reunião. Portanto, o JG é não somente um avanço do Direito, como igualmente possível, barato e indicativo de que o Brasil escolheu separar o justo do injustificável.
Outro equívoco é aventar a sobrecarga na Justiça. Ocorrerá o oposto. Sobrecarregados de tarefas magistrados e serventuários estão desde a tripartição com Legislativo e Executivo. A inovação vai dividir as missões de investigar e julgar. Quer dizer, inovação por aqui. Na Europa e no restante das Américas, a iniciativa vem do milênio passado. Como Aury Lopes Jr. disse no STF, “é um caso típico de divisão de competência funcional”, e escreveu em “Fundamentos do Processo Penal”: “Importa que tenhamos uma estrutura dialética, com juiz completamente afastado da arena das partes e da iniciativa probatória, com máxima originalidade cognitiva e estrita observância do contraditório e das demais regras do devido processo”. Outro renomado jurista, Lenio Streck chama o JG de “remédio contra nossos desejos morais, contra nosso senso comum, contra nossas idiossincrasias”.
O STF deve declarar o óbvio, a constitucionalidade, a necessidade, a chegada do Direito Criminal brasileiro ao pós-Idade Média. Tudo que surge em prol do cidadão é cercado de chorereu e ranger de facetas dentais. É a investida das deusas da fúria que, avisou Streck, “se mudaram para as redes sociais”. Foi assim com a nova Lei do Abuso de Autoridade, que atendeu a previsão feita por mim aqui no Poder 360 em 24.jul.2019: pune abuso nenhum, apenas alguns policiais de vez em quando. Tem sido assim com a audiência de custódia, mecanismo de proteção catapultado a indústria das infindáveis prisões preventivas. Mesmo sob a ira das mídias digitais, o juiz das garantias será um olho no olho, diferente do olho por olho em que se transformou o sistema penal brasileiro.
Demóstenes Torres é colaborador do Portal do Alan.