Demóstenes Torres
Uma brincadeira frequente nos sites culturais e nas redes é sobre qual o melhor início de livro. Nunca sei responder com menos de 5 alternativas, às vezes muitas mais. Quanto a música não há dúvida, é “A flor e o espinho”, de Nelson Antônio da Silva, Alcides Caminha e Guilherme de Brito:
“Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor”.
Caminha é um grande personagem, sobretudo por ter criado um, Carlos Zéfiro, e com ele assinado os “catecismos”, publicações de desenhos eróticos que circularam nos anos 1950 a 1970 – o pseudônimo ficou famoso até ser revelado em 1991 que o artista da “pornografia”, inocentes cartilhas se comparadas à permissividade reinante hoje, era um servidor do Ministério do Trabalho temeroso de perder o emprego se assumisse a ousadia.
Brito era poeta e o parceiro mais frequente do aniversariante deste 29 de outubro, que tudo leva a crer ser o autor do começo maravilhoso, Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho, um policial militar que patrulhava o Rio de Janeiro. Não se tratava de um exemplo de servidor público, vivia na cadeia do quartel por passar o expediente a conversar com a turma (Cartola e Carlos Cachaça, entre outros) em botequins:
“Eu ia tantas vezes em cana que já estava até acostumado. Era tranquilo, ficava lá compondo.” Deu asas a cerca de 500 letras, algumas das quais clássicas.
Não existem mais compositores do nível do mencionado trio, nem o Rio há mais, nem aquela polícia com sua liberdade de patrulhar. Imagine o soldado Nelson Cavaquinho em seu cavalo “Vovô” fazendo a ronda nos becos da comunidade, nas encostas de morro… até encontrar aberta a 1ª birosca com um balcão, copos e garrafas. Se fosse um estabelecimento chique, talvez duas ou três mesas consignadas por cervejaria – Brahma, como de seu gosto.
Lá pelas tantas e tontas, sabia mais nem onde estava, nem ele e muito menos o cavalo. Cadê o Vovô? Deve estar na 1ª venda em que o jóquei parou, não importa, não era ele quem localizava o animal, mas o contrário, na lembrança insuspeita de Cartola – proprietário, com a mulher, Dona Zica, do Zicartola, o bar em que Nelson oficiou na outra profissão, não a de militar nem a de pedreiro, a de sambista, a tocar seu instrumento com dois dedos, “um coração poeta e a alma inquieta de um cantor pra que vigiasse a madrugada, acordasse o sol e o beija-flor”.
Apesar de tamanha sensibilidade, por arranjos do sogro foi parar na polícia em dois sentidos, 1) virou soldado tendo mísero um ano de estudo e um ano a menos na idade mínima exigida – nasceu em 1911, o pai assegurou-lhe o emprego na Cavalaria falsificando a documentação para 1910; 2) quem celebrou a cerimônia de seu enlace matrimonial foi o delegado e quem entrou com ele na “igreja” foi o pai da noiva, na marra, mesmo assim o casamento ainda durou quatro filhos.
A malandragem era outra. E a felicidade? Também. Ou inexistia. Como escreveu junto com Brito, “Tens que sofrer pra ser feliz” e “Mais uma vez/ Venho a vocês/ Pra confessar que nunca fui feliz”. Porém, num documentário de Leon Hirszman, Nelson Cavaquinho, de 1969, encontrável no YouTube, já começa felicíssimo, fumando e bebendo pinga em boteco com a rapaziada, o melhor conjunto de samba de todos os tempos. No paraíso, portanto.
E “música de corno” também era diferente. Abra aí no streaming e ouça “Pecado”, declaração de amor à traidora: “Vai antes que os outros me apontem/ Antes que eu morra de vergonha de te perdoar/ Vai, antes que o sol transforme em pedra/ O lamaçal que tu trouxeste/ Para dentro do meu lar”. É, chifre já produziu muita coisa melhor que pente e berrante. Mantendo a rima, “Quem diz não mente: na mão de um fraco sempre morre um valente”, na canção a recordar a frase de Noel Rosa que ouviu na Mangueira: “O revólver veio para acabar com a valentia”.
Noutro documentário, Nelson de copo e alma, Dona Zica relembra a bronca de Cartola porque negociara coautoria em música. Nelson rebateu: “Não, só vendi a minha parte”. Era questão de almoçar e jantar, porque a fome é uma péssima compositora, à exceção de seu parça Zé da Fome e da que aparecia em poemas como “Nem todos são amigos”: “Você tendo vida, saúde e dinheiro/ Todos lhe querem muito bem/ Mas se você fracassar/ Pode ter a certeza/ Que ninguém vem lhe procurar// Não conte com amigos/ Amigos não são todos/ Alguns só sabem lhe chamar para beber/ Mas se lhe encontrarem com fome/ Fogem de você”.
Nem apenas traição e amizade lhe rendiam tristeza, transformada em diversas pesquisas acadêmicas, intelectuais exumando a origem do ouro em forma de estrofes. Permearam seu semblante de adulto as cenas que o menino Nelson viu aos 7 anos: “Aqueles caminhões cheios de cadáveres… Eu digo: ‘Mas aonde irá essa gente?’” A gente foi para seus versos que parecem melancólicos e se encaixam na moldura dos retratos dos 15 mil caixões de cariocas vítimas da gripe espanhola, pandemia bem mais letal no mundo do que a de Covid 19, com o dobro de mortos num planeta que próximo a 1920 tinha 3,5 vezes menos habitantes que atualmente.
Andaria triste como nunca no seu Rio de agora, no qual a polícia está impedida de entrar nas favelas (o que adorou enquanto esteve em ambas, na polícia e na favela) e sons ininteligíveis atravessam o samba. Para começar bem um livro sobre ele, esqueça-se a tristeza de pestes, amores perdidos ou companheiros fakes, basta lembrar de outra frase lindíssima de “A flor e o espinho”:
“Eu só errei quando juntei minh’alma à sua
O sol não pode viver perto da lua”.
Parabéns a quem ouve Nelson Cavaquinho e não se resume a ler início de obras.
