
Demóstenes Torres
Domingo de sol, o Brasil pintado de verde e amarelo, o mundo acabando e eu aqui ouvindo Adoniran Barbosa e preocupado com a economia. Volto ao interminável 1958, a seleção de futebol ganharia a primeira de nossas 5 Copas da Fifa, estava no cargo o melhor de todos os presidentes destes 135 anos de República e era assim que se saía do aluguel:
“Eu arranjei o meu dinheiro
Trabalhando o ano inteiro
Numa cerâmica
Fabricando pote
E lá no alto da Mooca
Eu comprei um lindo lote
Dez de frente e dez de fundos”.
Em vez de se inscrever numa ONG de sem-teto, o eu-lírico de Adoniran em “Abrigo de vagabundos” transpirou na lida da cerâmica até adquirir o microterreno e erguer um barraco. Em 2025, essa história seria um absurdo. Como pode alguém ter de se dedicar à profissão de meu amigo Antônio Poteiro, magistral artista plástico primitivista, para conseguir os recursos de erguer moradia própria? Trabalhar? Onde já se viu? Dois amigos seus, desocupados, não quiseram acompanhá-lo no esforço e agora “andarão jogados na avenida São João/ Ou vendo o sol quadrado na detenção”.
Adoniran nasceu a 6 de agosto de 1910. O Brasil desenvolvimentista que o formava homem se agigantou até mais do que se esperava na segunda metade da década de 1950, quando compôs a música. Floresceram os anos JK, vinha-se da 2ª Guerra, do suicídio de Vargas, do progresso reduzido ao litoral Sul/Sudeste. A taxa de crescimento do Produto Interno Bruto beirou os 8% em todos os “50 anos em 5” e até os ultrapassou no governo seguinte, do parlapatão JQ, seguido de JG. Sim, os êxitos de Juscelino Kubitschek, como os de Adoniran, continuaram reverberando – em 1961, ele já era ex e o PIB subiu 8,1%, fruto dos investimentos nas diversas áreas da indústria.
Àquela época, retrata a letra, cadeia era para vagabundo, assim entendido o sujeito sem serviço, vivendo no que hoje seriam as cracolândias. Está na moda outro personagem da canção, João Saracura, arranjador de pequenos trambiques, remunerados ou não, como legalizar construção sem planta. Os joões atuais saram, curam e tomam dinheiro de aposentados, vendem lugar na fila da habitação, fraudam os motivos dos benefícios previdenciários e bufam satisfeitos, afinal, em vez de estarem na cadeia, estão nos cadastros de políticas públicas.
João Saracura viu o ex-presidente Jair Bolsonaro entregar a dívida pública bruta em 71,7% do PIB e ela alcançar 76,6% no fim do recente semestre, com expectativa de chegar a dezembro em 79,6% ou R$ 10,1 trilhões. Antes, quem crescia 8% ao ano era o PIB; agora, é a dívida pública. Os gargalos se multiplicam. De janeiro a junho últimos, o governo federal pagou R$ 416,7 bilhões em juros. O País está como o Alcebíades de outro sucesso de Adoniran, “Aguenta a mão, João”, que reclamava por ter perdido a casa derrubada num temporal (parece que os versos foram escritos após as chuvas da estação anterior):
“C’o Alcebides, coitado, não te contei?
Tinha muita coisa mais no barracão
A enxurrada levou seus tamancos e o lampião
E um par de meia que era de muita estimação
O Alcebides tá que tá dando dó na gente
Anda por aí com uma mão atrás e outra na frente”.
Em “Saudosa maloca”, Adoniran diz que “Deus dá o frio conforme o cobertor”, todavia o Altíssimo foi ultrageneroso com o Brasil. Quanto mais os governantes tentam afundar o País, mais o Salvador aponta os caminhos da redenção. O Ministério do Meio Ambiente e o Ibama fazem tudo para os brasileiros não aproveitarem o que há no subsolo nem na superfície. Tratam produtor rural na ponta da espada. Seguram as licenças até negá-las, como estão agindo na Margem Equatorial e na Bacia de Santos, que não param de gerar boas notícias. No litoral paulista, a parte privatizada do petróleo acaba de realizar a maior descoberta do século. Pra que explorar a riqueza se o que desejam é explorar a pobreza?
É mais fácil gerir uma população de dependentes, como o Mato Grosso e o Joca de “Maloca querida”, ou o Alcebíades. Quando a pessoa tem o patrimônio resumido a um lampião, um par de meias e outro de tamancos, fica fácil para um João Saracura preencher sua ficha em um projeto e garantir seu voto. E cá estamos no meio do ano apreciando a demolição, mora a tristeza onde a gente vai e cada direito que cai dói no coração.