Demóstenes Torres
Botafogo foi minha primeira paixão. E em dobro. Era um córrego piscoso na Goiânia da minha infância, em meados da década de 1960, e o coração do pescador-mirim acabou fisgado pelo clube do Rio de Janeiro.
Tenho na memória as melhores imagens dos dois, do 1º enchendo as vistas de belezas naturais a partir dos barrancos em que atirava as linhadas, do 2º construídas pelas narrações dos locutores de rádio.
Desde então, o riozinho vem sendo diariamente vítima de homicídio tentado e o Fogão tem cada vez mais vida, conquistando a glória eterna da Copa Libertadores no recente 30 de novembro e o Brasileirão no domingo, 8 de dezembro.
Nestes dias de chuva, os 10km de comprimento do arroio Botafogo têm sido notícia por transbordar.
É de sua natureza se impor além da caixa de concreto que o aprisiona em 4m de largura.
Nestes dias em que chove contentamento, a instituição Botafogo não sai de pauta por transbordar felicidade.
Futebol e regatas apenas no clube carioca, pois os rios da minha aldeia, como o de Fernando Pessoa, já foram maiores e mais livres, neles se buscavam os lambaris do almoço, por eles ia-se para o mundo.
Nos córregos Capim Puba, a poucos passos da casa em que cresci, e Botafogo não sobreviveram canoa, remo, peixe, borboleta, flores, água limpa de beber e de banhar.
A fonte de boas emoções do momento é o Botafogo FR, definido como glorioso por Lamartine Babo, que escreveu os hinos extraoficiais de 11 clubes, meia dúzia deles num só dia de 1949, inclusive o do Fogão. Aliás, ficou mais lindo que o oficial e ambos muuuuuuuito mais que os dos outros.
Só pré-adolescente soube que Botafogo era nome de diversas atrações no Rio, como a praia aterrada para fazer avenida e tão importante que foi refeita pela máquina pioneira ao abrir o Canal do Panamá.
E a gente aprendia tudo isso no rádio e na TV p&b. Decorava as escalações dos diversos participantes dos torneios no eixo RJ-SP-MG. Lembro-me da maioria. Para memorizar os do Glorioso, bastava saber os do Brasil bicampeão em 1958 e 1962. Era imbatível o/a SeleFogo.
Ao longo das décadas, o Botafogo testou o coração da torcida, do qual jamais saiu. O tetra carioca de 1932 a 1935 não se repetiria e só seria campeão novamente uma vez por década, em 1948 e 1957. Voltou ao topo nos anos 1960, com 13 títulos, 3 deles internacionais (Torneio de Caracas 1967/68/70), 6 estaduais em 3 bis (os cariocas de 1961/62 e 1967/68 e as Taças Guanabaras 1967/68), além de 4 nacionais, a Taça de Prata/Roberto Gomes Pedrosa de 1968 e o Rio-São Paulo de 1962/64/66 – talvez pela rima, a CBF só equiparou ao Brasileirão o Robertão, mas o Rio-SP de então era tão merecedor quanto.
Nesse contexto, eu e milhões de outras crianças começamos a torcer para o Botafogo. Era inescapável e, que ótimo!, não escapamos.
Ecoam ainda hoje em minha mente os passes, os desarmes, os gols de 1968, o ano que nunca vai terminar. Como esquecer craques do nível de Manga, Carlos Alberto, Rogério, Valtencir, Ferretti, Gérson, que atuou com nosso trio na melhor equipe esportiva de todos os tempos no planeta, a Seleção do tri em 1970, Jairzinho, Roberto e Paulo César Lima, que depois virou Caju? Antes do biênio de ouro, 1967/68, e do Diamante Negro em parte do tetra, o Botafogo teve uma geração de pedras preciosas lapidadas para a imortalidade, como os astros das duas primeiras Copas do penta do Brasil, Amarildo, Didi, Garrincha, Nilton Santos e Zagallo.
A TV era como a camisa do Botafogo, alvinegra. E raridade. Na vizinhança do bairro em que morávamos, o Marechal Rondon, o único da rua que tinha o aparelho era outro militar, o capitão João Estêvão. Nossa família inteira, duas dúzias de olhos, assistia lá.
Quando meu pai comprou uma, em 1965, o show passou a ser lá em casa, sala lotada, gente no quintal, pendurada na janela, esticando o pescoço por cima da cerca, esforçando-se de todo jeito. Afinal, para ver o desfile do Fogão valia tudo.
Depois, duas décadas sem nem vice, seca brava interrompida somente com a Taça Rio de 1989 e o bi carioca de 1989/90. Desencantamos com meu conterrâneo Túlio Maravilha & Cia. em 1995, quando a estrela deixou de ser solitária, até aportarem os investimentos do Mr. John Textor. Revivemos no ano passado as agruras, com as piadinhas de sempre, “tem coisa que só acontece com o Botafogo”, cavalo paraguaio, voo de pato etc. A hora chegaria. E chegou.
As apresentações de Luiz Henrique e Igor Jesus com a camisa canarinho nestas eliminatórias para a próxima Copa reviveram em mim as transmissões de rádio, a TV p&b e a magia dos 60’s. Pensei: “Agora, vai”. Foi.
Em 2023, havia imaginado o retorno das comemorações, porém, não com o ímpeto deste campeonato. Parou em certo ponto, mas foi.
Foi longe. Merecidamente.
Estreia nesta quarta em Doha, na Taça Intercontinental, e joga em 2025, nos Estados Unidos, o 1º Mundial de Clubes verdadeiro. Como tem coisa que só acontece com o
Botafogo, que tal trazer do Catar e da América do Norte mais um bi para o Brasil? Sonho em preto e branco. A próxima realização é pescar nas águas translúcidas de outro Botafogo, o córrego do centro de Goiânia.
É, infelizmente, está mais fácil surgir um atleta que drible igual ao Garrincha, lance com a perfeição de Gerson, atue na lateral tipo Nilton Santos, defenda a cabeça da área como Carlos Alberto, bata falta no estilo Didi, seja vencedor como Zagallo, furacão como o Jairzinho, habilidoso como Luiz Henrique e oportunista como Túlio Maravilha. Ou concentra tudo isso num só jogador ou será banco no Fogão.