João Paulo Teixeira*
Supõem-se que uma “memórias póstumas” deva feder a mofo, jazigo e a poeira do tempo. É um baú antigo, uma carteira basta, de propriedade de um bisavô saído do mundo de antanho.
Só um gênio pode batucar tão finamente essa pluma para transformá-la em pó mágico digno da complexidade de Dostoiévski e do sabor tropical de uma fruta amazônica.
Quando Machado dedica-a (já na quarta edição) ao verme que primeiro lhe roeu as “frias carnes”, vê-se aí a pena poética de Shakespeare – o Deus literário do Ocidente – o espiritismo de Sterne, que tão bem psicografou o crítico Harold Bloom, e a fleuma de um Aristóteles, dono de uma racionalidade sem tamanho.
Em suma, é o trino do realismo.
A descrição de Virgilia, que me é fresca na cabeça, é inegável. “Ignorante”. “Voluntariosa”. A da coxa, verdadeiro monumento do Primeiro Testamento. De Marcela, a espanhola tão linda como Sônia Braga, a descrição perfeita: “Mal conhecia a moral”. De Capitu, da outra obra, é a “cigana oblíqua e dissimulada” dos “olhos de ressaca”.
Nu e cru, malvado, ao pegar-lhe suas musas, derrubá-las do pedestal do romantismo e narrá-las, em câmera lenta 4K, ao bater e arrastar com a cara no cascalho.
O velho que tem frescor que nenhum tiktoker tem.
Li o “Memórias Póstumas ” pela quarta vez nesse fim de semana.
O fiz em muito influenciado pela gorda blogueira americana que, ao ler cada livro do mundo, já queria desistir do projeto na letra “B”, de Brazil, por sentir o velho sentimento “o que eu vou fazer da minha vida depois que terminar esse livro”.
Ela, que leu em inglês, já quer mandar o projeto – que chegaria no Z, de Zimbábue – às favas e começar a aprender português.
Eu que já nasci com a língua de Saramago e Pessoa – tenho a decência de falar a única língua pronunciável, como diz o Suassuna – faço o que posso: fico relendo-o como livro de segurança.
É literalmente o machado de incêndio de minha biblioteca.
É igual a Netflix e Amazon Prime: está com medo de perder tempo assistindo porcaria? Veja pela 38º vez seu filme favorito. Os meus elegi logo dois: as ideias distópicas de caminhoneiro em “terminator 2”, de James Cammeron, e os “Mad Max” do doido médico Geoge Miller. Dois diretores de “road movie” transloucaodos que fazem do cinema o que ele é: o entretenimento barato.
É assim com Machado, só que apurado e sofisticado 10 vezes elevado centésima potência.
Quer garantir horas gostosas na vida (e quem não quer, né)?! Releia seu(s) magnífico(s) invento(s).
De sério diplomata a tino de Bezerra da Silva
Mas, há mais. Machado de Assis parece sério com as fotos. Um digno desembargador no seu terno de trabalho. Sua imagem mais famosa é de refino de godeme (trecho que ele mesmo usa ao citar os ingleses) que tirá-lhe todo o aspecto de mulato.
Aliás, de saísse da tumba como faz Brás Cubas, creio que Machado almejareia ser alcunhado de tudo, até de Casmurro, mas não de mulato. Sua biografia ideal é do amável playboy Brás Cubas, que nada faz a não ser enrolar e sair com casadas, mas, é dotado de grande cérebro. Isso o redime, o eleva às graças da redenção.
Seus longos 150 anos de sepultura – se não for mais, dependendo se é de Joaquim Maria ou Brás Cubas – mostram-me homem jovial, fino, de galhofa carioca estilo Zeca Pagodinho ou um Bezerra da Silva da literatura. Perdoa-me a forma chula, mas há nos três a gatunice dos morros fluminenses.
Aquela forma de tratar o leitor, conduzi-lo pela mão, toureá-lo, tocá-lo de roda, está para as letras como o samba é pai do hip-hop.
Vê-se ali, e também na narrativa de Bentinho, um homem lépido, um filho legítimo desse século e e ainda mais dos muitos outros que virão.
Tenho certo que a literatura o fará lufar pelo menos pelos próximos 400 anos.