2023-06-22_Sebastião_Reis_Júnior

Demóstenes Torres

O Superior Tribunal de Justiça é chamado de Corte da Cidadania. Foi criado pela Constituição de 1988, apelidada de Carta Cidadã. Portanto, nada mais adequado que seus componentes possuam esse perfil. Felizmente, os Tribunais Regionais Federais (TRF), os Tribunais de Justiça (TJ), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e os Ministérios Públicos têm cedido ao STJ quadros de incomensurável grandeza. Observe-se a atuação do ministro Sebastião Reis Júnior, que aproveita as horas livres com quem perdeu a liberdade. Sua opção preferencial é pelos pobres e, nesse segmento, pelos que estão presos e, destes, pelos transgêneros, que são os mais sofridos entre os brasileiros campeões em discriminação, os LGBTQIAPN+. No mínimo, é o melhor julgador criminal do Brasil. Faz jus aos maiores títulos, láureas e prêmios. Por muito menos dedicação a causas mais solúveis existem no exterior diversos ganhadores do Nobel da Paz.
Ida de ministro de tribunal superior é notícia em qualquer lugar, mas Reis Júnior prefere o anonimato dos desvalidos, a escuridão das masmorras, pois lá habitam os sem-ninguém. Convive com a premissa errônea de que cárcere abriga as escolhas dos encarcerados, inclusive aqueles que não tiveram alternativa fora do crime, ou não tiveram crime e foram parar ali assim mesmo. Presencia o produto de erros dos três poderes.
O Legislativo falha por conter o suco filtrado nas urnas. Para ficar no nicho das mulheres trans, são apenas 2 estão no Congresso. E não são essas as personagens do ministro. Está atento a quem sequer tem voz.
O Executivo falha por investir em prisão, não em prevenção. Sobe o morro e desce carregando cadáveres, não informações para voltar com escolas profissionalizantes, faculdades, financiamento para o empreendedor. Entra na favela tendo nas mãos armas em vez de computadores, livros, cursos de desenvolvimento de games. Vê o jovem da periferia como suspeito e Reis Júnior o enxerga como o futuro do país.
O Judiciário não escapa de suas críticas, como as feitas na semana passada na Chapada dos Guimarães, durante o V Encontro do Sistema de Justiça Criminal do Mato Grosso, organizado por Marcos Machado, desembargador do TJ-MT. Teve atrações de altíssimo nível, como o advogado Nabor Bulhões (conhecido e respeitado em todo o mundo), os juristas Eugênio Pacelli e Rogério Sanches, o ministro Rogério Schietti (STJ), Ney Bello (desembargador do TRF-1), além de participantes da Magistratura, da Advocacia e do MP locais e de outros Estados. Debati tutela inibitória no processo penal ao lado da professora Natália Oliveira, do juiz João Portela e do desembargador Paulo da Cunha. Foram dias de enorme aprendizado e revivo aqui uma das aulas, exatamente a de nosso futuro prêmio Nobel.
“Alguma coisa está fora da ordem”, canta Caetano Veloso replicado por Reis Júnior. Seu diagnóstico é cirúrgico, com incisões precisas na mente dos que fazem do processo penal um pandemônio. “O sistema não está funcionando”, conclui o ministro. “Alguma coisa está errada e temos de revê-la”. Reclama da política punitivista: “Ressocialização, prevenção e direito de presos são quase palavrões. Quem fala é execrado e ouve: ‘Leva [o detento] pra casa!’, ‘Toma que é teu!’”.
Falta a consciência, diz o ministro, de que quem entra na prisão vai sair, “a não ser que morra lá dentro, o que também acontece com frequência”. Como estará o egresso? “Bem pior do que quando entrou. Aperfeiçoado. Aquele que não era de organização criminosa, adere a alguma para sobreviver lá dentro”.
De quem é a culpa? Reis distribui:
“Culpa da Magistratura, que deveria ser mais consciente. Juiz, desembargador e ministro integram um sistema orgânico. Há hierarquia. A decisão do juiz de 1ª instância pode ser revista pelo TJ ou TRF, cujas decisões podem ser revistas por STJ e STF. Quem não estiver satisfeito que peça o boné e saia. Para esse sistema funcionar, o de cima deve ser obedecido. Não em caso de decisão isolada, conflitante, mas naquilo que for consolidado, firmado por 10 ministros que compõem a seção criminal. Não seguir essas orientações cria o caos na Justiça. Estamos vendo o incentivo à litigância. Não posso nem criticar o advogado que abusa do habeas corpus [hc], porque tudo pode acontecer [na decisão do magistrado]. Como dizer não [ao hc] sem contar a quantidade de decisões contrárias? Outro dia, o ministro Schietti [presente na plateia] julgou uma decisão do TJ-SP em que se aplicava norma declarada inconstitucional havia 10 anos. Qual a lógica nisso? Então, a Magistratura tem parte de responsabilidade nesse caos e tem que fazer mea culpa. Nós nos deparamos com situações de presos há 7, 8 anos sem júri. Inquéritos, alguns sem complexidade, que demoram 10 anos. O sistema não está funcionando. Não há como contestar essa realidade”.
“Culpa da advocacia, que muitas vezes abusa do direito de recorrer, não só com interposição de recursos normais, mas também do uso do hc. Lá no tribunal, nos vemos hc junto com rhc [recurso em habeas corpus], hc junto com REsp (recurso especial), hc no lugar de apelação. Entram com hc e REsp, aí vc fala: ‘Está discutindo a mesma coisa’. E o advogado: ‘Não, no REsp discuto isso, no hc discuto aquilo’. Usa 3 hc contra a mesma decisão, em cada um deles discute uma questão específica. É o caos, não conseguimos trabalhar. Outro dia fui receber um advogado e ele me disse que sabia que a questão não era caso de liminar, mas pedia por ser praxe. Ou seja, eu teria de parar e examinar, dar uma resposta àquela liminar. Se não tem liminar, você manda para o MP, solicita informações, praticamente só vai ter que proferir decisão no final. Com pedido de liminar, sou obrigado a tomar duas decisões. E isso mexe não só com a estrutura do gabinete, mas também com a secretaria [do STJ], porque você tem que intimar, publicar…”
Culpa das petições gigantescas: “O advogado às vezes não junta documentos ou junta demais. Já recebi hc com 7 mil páginas. Você fica na dificuldade: o que é importante? E hc com milhares de páginas ainda tem pedido de liminar. E o tempo para analisar uma questão dessa? Então, o advogado tem que ajudar o juiz a ajudá-lo, facilitar a atuação do juiz, com petições curtas, processos bem instruídos, documentos colocados por ordem de importância – não é simplesmente juntar a cópia da ação penal e deixar o juiz bater [olhar cada] folha e identificar o que tem de importante ali. Critica muito o juiz que contraria os precedentes dos tribunais superiores, mas reiteradamente ataca decisões firmadas em súmulas. Não estou dizendo que tal matéria não precisa ser discutida, mas apenas que traga pelo menos argumentos novos, diferentes, que justifiquem o reexame daquela tese. É um desserviço insistir em argumentos que já foram enfrentados. E o hc, que era um instrumento célere, entrou na vala comum”.
“O Ministério Público tem sua parcela de responsabilidade. Denúncias malfeitas, endosso de ações policiais absurdas… Já nos deparamos com confissões obtidas mediante violência e mesmo assim foi feita a denúncia. O juiz absolveu justamente em razão da forma como se obteve a confissão e o MP apelou, insistindo na tese sem tomar qualquer tipo de providência contra os policiais [agressores]. Há reconhecimentos absurdos: o ladrão estava com balaclava [gorro que cobre a cabeça e o pescoço], só com os olhos de fora, à noite, no escuro, contato visual por 1, 2 minutos e é identificado por uma foto 3×4. É evidente que tem de pensar 2, 3 vezes se aquela prova é válida. E o MP simplesmente endossa aquilo lá e toca pra frente, ‘vamos ver o que vai dar’. Sem contar que [o MP] peca por excesso ou falta. Algumas denúncias são verdadeiros livros, 400, 500 páginas, ou então extremamente enxutas, envolvendo uma diversidade de réus, investigados, sem que haja um mínimo de cuidado em discriminar, mesmo que de forma circunstancial, a atuação de cada um deles”.
As análises irrepreensíveis de Reis Júnior contam com um anexo, o exemplo. Ele é de uma simplicidade franciscana. No Mato Grosso, passou o evento inteiro usando no punho a fita amarela que identifica os participantes, mesmo sendo um astro do direito brasileiro. A humildade de circular entre as presas lhe rendeu um livro e uma exposição após a incursão que fez ao Centro de Detenção Provisória em Pinheiros 2, em São Paulo. A narração da visita é um dos grandes poemas publicados no Brasil neste século. Só não ficou melhor que as fotos. Não é apenas uma sucessão de cliques e flashs. É a ação de um poeta, pois trata bem as palavras e as imagens. Nasceu em 1965 no mesmo 4 de janeiro em que morreu o escritor T. S. Eliot, ambos do interior do país (Reis de Brasília, Eliot do Missouri, nos Estados Unidos). Eliot mereceu e recebeu um Nobel, o de Literatura, em 1948. Sebastião dos Reis Júnior, por enquanto, apenas mereceu.

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