Demóstenes Torres
José Carlos viveu 4 maravilhosas histórias de amor:
a) Com a artista plástica premiada internacionalmente Evany, com quem se casou em “cerimônia de rara imponência”, como a descreveu a 1ª edição de 1956 da revista “Ilustração Brasileira” em páginas sob o título “Enlace Moreira Alves – Albuquerque Maul”;
b) Com as ciências humanas, sobretudo o latim e o direito;
c) Com o magistério, sonho profissional de infância que permeou as demais;
d) Com a Suprema Corte. Aliás, ele era ministro do Supremo Tribunal ou o Supremo era o tribunal do ministro José Carlos?
A média das paixões é de 2 anos. A de José Carlos e Evany se assemelha à eternidade. E é. Durou dos 9 (quando se conheceram na escola) aos 90 (quando ele morreu, em 6 de outubro de 2023). Estudaram juntos primário, ginásio e científico. Prestaram vestibular juntos – só 19 passaram; o casal, inclusive; ele em 1º. Fizeram juntos graduação (ambos premiados pela OAB ainda durante o curso, ele em 1º nos 5 anos) e doutorado em direito.
Tiveram 2 filhos, Sônia Regina e Carlos Eduardo. “O destino os aproximara e o destino os uniria para a vida”, escreveu Carlos Maul, pai de Evany e jornalista da Ilustração Brasileira.
Era facílimo se apaixonar por Evany, um mundo de qualidades além de beleza e talento. Tinham as mesmas predileções por leitura (romances) e música (Alberto Nepomuceno, Arthur Napoleão, Beethoven, Chopin, Claude Debussy, Henrique Oswald, Tchaikovski). E equiparado desempenho intelectual. Moreira tornou-se um monumento à Justiça, igual à performance de Evany como defensora dos direitos da mulher.
O bem-querer das ciências foi alterado no correr do processo. A pintora Evany, que treinou com os artistas Manuel Madruga e Rodolfo Chambelland, enfurnou-se nos livros jurídicos junto com o futuro médico que mudou de ofício ao notar que tinha “horror a sangue”.
O gosto por ser professor desvelou a vocação de uma biografia ininterrupta nas mais respeitadas faculdades de Direito do Brasil, as quais acessou por mérito. Deu aula de Direito Romano na Universidade de Roma.
Atingiu a fluência absoluta em alemão para estudar o civilismo germânico, que influenciou o Código Civil português e o brasileiro, de cuja parte geral Moreira é autor (sem receber 1 tostão). Integrante único da comissão de redatores de leis no Ministério da Justiça, dedicou 6 anos ao Código Civil, que graças a seu conhecimento restou compacto, sem o temido fracionamento por áreas.
Mas foi na 4ª paixão que entrou para a História do Brasil. Sem ser político, apesar de sobrinho-bisneto do presidente Rodrigues Alves e aparentado também do governador paulista Carvalho Pinto, galgou cargos por ser capaz. “Não pedi coisa nenhuma a ninguém nem tinha pistolão”, resumia. Isso remete novamente à meritocracia. Injustiçado num concurso de professor pelo nepotismo de um dirigente acadêmico que o preteriu em favor do próprio filho, foi erguido em triunfo por multidão de jovens. Um editor do jornal O Estado de S.Paulo viu o espetáculo e decretou: “É um líder das esquerdas estudantis”. Mas um diretor havia presenciado outro show, sua apresentação para o teste de latim, e o referendou a quem escolheria livres-docentes. Sobressaiu-se em sequência e foi subindo… Até o então chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, indicar para procurador-Geral da República um sujeito separado da esposa. Conservador ao extremo, o presidente Emílio Médici o vetou. Volta à cena o batizado por Moreira de “acaso das circunstâncias”. Virou PGR, a chefia dos Ministérios Públicos da União.
Encontrou terra arrasada.
Sei bem como é. Tive em comum com Moreira o fato de, antes dos 40, assumir procuradoria-Geral sem estrutura alguma, ele a da República, eu a de Justiça de Goiás. Ambas sem sede e quase sem pessoal, mas a dele era pior. Assessor? Um datilógrafo. Mobilidade? Um carro caindo aos pedaços. Procuradores? 67 no país inteiro. No auge dos esforços para dotar o MPU do mínimo necessário, mudou de general na Presidência, de Médici para Ernesto Geisel.
Certamente, seria demitido. Ernesto nem sabia de quem se tratava e Moreira Alves achava que outro Geisel, Orlando, estaria irritado com ele por ter protocolado memorial (resumo de peças de um processo levado ao magistrado) muuuuito curto: somente 1 folha A4 e meia. À época, a PGR exercia também a advocacia da União e o Exército, comandado por Orlando Geisel, precisava defender mais de 400 oficiais na iminência do rebaixamento. E essa lauda e meia havia sido o último ato de Moreira Alves na PGR. Um ajudante de ordens de Orlando o procurou para reclamar. Em entrevista ao projeto História Oral do Supremo Tribunal Federal, da Fundação Getúlio Vargas, conta o que respondeu ao auxiliar do comandante:
“Coronel, o senhor diga ao general que a gente, quando tem razão, não precisa escrever 50 páginas. Basta 1 página e pouco…”.
Portanto, era razoável esperar o bilhete azul. Contratou caminhão para mudança de volta para o Rio de Janeiro após 2 anos em Brasília. Nas exíguas horas de folga, montou força-tarefa com Evany, os filhos e a sogra, Dagmar, encaixotando os bens, a maioria livros, que chegariam a 20 mil em seguida. Elaborou a carta de despedida e agradecimento. Surpreendentemente, Ernesto, que nunca o havia visto, manteve Moreira no cargo e garantiu que seria ministro do Supremo. Cumpriu. Para o bem do Brasil.
(Detalhe: a lauda e meia de memorial revelou-se eficiente, pois venceu a causa e livrou os quase 500 oficiais.)
Havia me encantado uma palestra de Moreira Alves em Goiânia. Consumia suas obras, principalmente as de Direito Romano, mas não estivera com ele. Foi impossível conversar na conferência. Ao assumir no Senado, em fevereiro de 2003, logo pedi audiência para conversar com ele. Assunto? Qualquer um. Aluno de direito na 2ª metade dos anos 1970, participei de diversos debates sobre temas abordados por Moreira. Num, o professor Nelci Silvério de Oliveira afirmou que ele seria ministro até os anos 2000. Parecia distante. Alcançara. Agora, estava ali em sua frente lamentando a aposentadoria do imensurável baluarte ainda naquele 2003. Balbuciei algo como a esperança de a compulsória passar para 75 anos (o que viria anos depois). Com quase 3 décadas na cadeira (“27 anos e 10 meses”, corrigiria), José Carlos queria fazer como o pai, Luiz, que já na manhã seguinte à aposentadoria foi a uma praça do Rio de Janeiro curtir a liberdade em meio à azáfama. Havia conseguido tudo, inclusive o que sequer imaginara. E por seus esforços, não por acaso das circunstâncias.
Moreira bateu o recorde mundial ao encabeçar as principais instituições de uma nação:
- chefiou o Ministério Público (24/4/1972 a 19/6/1975);
- comandou o Tribunal Superior Eleitoral (21/8/1981 a 11/11/1982, preparando a volta das eleições diretas para governador dos 22 Estados);
- no prazo de 6 meses e 1 semana, presidiu os Três Poderes.
Seu professor de economia política, Alcibíades Delamare, profetizou após um entrevero em que o pupilo se sobressaiu na retórica: “O senhor ainda vai ser presidente da República” (como Delamare, Moreira Alves reverenciava os alunos chamando-os de “senhor”).
Cumpriu-se.
Judiciário: presidente do STF de 25/2/1985 a 10/3/1987;
Executivo: os presidentes da República, da Câmara e do Senado tiveram, cada qual com seu motivo, de viajar ao exterior. Moreira Alves ficou no cargo nº 1 do Brasil de 7 a 11 de julho de 1986, presidente por 4 dias (“Não: 3 e meio”, ele informaria).
Legislativo: a 40 dias de deixar o comando do Supremo, assumiu a presidência do Congresso Nacional para abrir, a 1º e 2 de fevereiro de 1987, os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.
Todavia, não era disso que mais se orgulhava.
Seu orgulho era 4 de seus alunos terem chegado a ministros do STF: Celso de Mello, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Carlos Alberto Direito.
Era ter formado milhares de cidadãos com seu saber e exemplo.
Era, brilhante ministro do STF, da posse à aposentadoria ter apenas dois assessores e redigir sozinho os próprios votos e relatórios.
Era nunca ter sido de direita nem de esquerda, ser chamado de ambas e necessitado de política para exatamente nada.
Era “durante todo o período da PGR e do STF, desde o tempo dos militares até depois, nunca, jamais, em tempo algum”, alguém lhe “telefonar para pedir voto ou para dar uma indicação do que seria o desejo do presidente ou o desejo do ministro ou o desejo de quem quer que fosse”.
Era reunir os amigos para ver corridas de automóveis e jogos de futebol. Infelizmente, nos deixou no Campeonato Brasileiro que o nosso Botafogo vai ganhar. (Torça fortemente aí de cima, ministro, porque a Estrela Solitária não pode ser estrela cadente justo agora na reta final.)
O que realmente dava orgulho que não cabia em si era a família, a artista guerreira Evany, a filha Sônia brilhar como advogada da União, o filho Carlos Eduardo trilhar seu caminho e já ter presidido o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com idade para chegar ao STF que o pai tanto honrou e engrandeceu.
Alguém desse nível alcança a imortalidade e não é porque Moreira Alves foi eleito para academias Paulista e Brasileira de Letras Jurídicas. É imortal porque quem viu não se esquece de seu sorriso. Detestava aparecer, escapava dos holofotes, mas na citada entrevista à História Oral do STF estava seu amigo e também ex-presidente do Supremo Nelson Jobim, que é divertido, gente boa, no estilo Moreira. Em três horas, com temas áridos, a conversa foi interrompida mais de 100 vezes por risos e gargalhadas, 8 por Jobim e 96 por Moreira Alves. Noventa e seis!, como era agradável conversar com ele! Além do conteúdo, a alegria.
Aí está sua eternidade. Ele discordaria. Permanece entre nós porque seus ideais vão se espalhando com as gerações. Sua neta Isabela apresentou “Decisão do caso ‘Sócios da Disco x Pão de Açúcar’ e seu impacto no Supremo Tribunal Federal”, trabalho de conclusão do curso de Direito em que esmiúça uma das exemplares atuações do “guardião [Moreira] do guardião [STF] da Constituição”. Isabela dedica a conquista à irmã, Mariana, aos pais José Alberto e Sônia Regina, ao tio Carlos Eduardo, à avó Evany e…
“Ao meu avô, José Carlos Moreira Alves, meu maior exemplo no Direito e na vida”.
Dela e de toda uma nação.