O “modo de ser caipira” ganhou releitura, com revalorização de representações, de elementos simbólicos, de referências identitárias e de pertencimento e se tornou uma das mais importantes bases culturais brasileiras.
Modas de viola, festejos de santos juninos, congadas e Folia de Reis, variantes linguísticas, shows agropecuários, festas de peão de boiadeiro, culinária típica, dentre outros. Superando a visão negativa de uma “cultura de atraso”, as cidades se rendem aos elementos identitários e a tradições resilientes do mundo rural. De acordo com um estudo desenvolvido no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP, “o ‘modo de ser caipira’ ganha novas releituras e, em um movimento pendular de resistência e de aproximação, se tornou uma das bases mais importantes da cultura brasileira”.
A pesquisa foi baseada em bibliografias de sociólogos brasileiros como Antonio Candido, Eunice Durham, José de Souza Martins, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Maria Isaura Pereira de Queiroz, que, durante a vida, se propuseram a pensar as linhas mestras de formação da cultura do País, além de depoimentos de 65 violeiros e violeiras, famosos e anônimos, de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás, que contaram sua relação flutuante entre o ser caipira e a vida urbana.
Segundo o estudo, por muitos anos, as pessoas cultivaram um sentimento simultâneo de afastamento e identificação em relação ao “caipira”, pelo fato dele ter sido associado a um mundo arcaico a ser negado, mas que, ao mesmo tempo, fazia parte das raízes culturais dessas pessoas. Em entrevista ao Jornal da USP, o sociólogo, violeiro e autor da pesquisa, Luiz Antonio Guerra, explica que, ao longo do tempo, o termo “caipira” sofreu um expressivo deslocamento semântico, devido às transformações materiais e sociais pela qual a população rural do Centro-Sul do Brasil passou desde o início do século 16, quando os bandeirantes adentraram o continente para explorar nossas riquezas minerais.
O que antes estava associado a uma cultura de atrasos, hoje ganha nova releitura, havendo uma revalorização de representações, de elementos simbólicos, de referências identitárias e de pertencimento por parte daqueles que se identificam com a cultura rural. “Hoje, o seu significado vai além de uma visão de um meio de vida de pessoas que moram em bairros rurais e ultrapassa tempos, espaços e experiências individuais”, diz Guerra.
Dentre os elementos identitários, o sociólogo escolheu como objeto de análise a viola, um instrumento musical de cinco pares de cordas, para compreender as mudanças nos usos do termo “caipira” e entender o significado atribuído a ele na contemporaneidade. A pesquisa, sob orientação do professor Luiz Carlos Jackson, da FFLCH, deu origem à tese de doutorado Mestres de ontem e de hoje. Uma sociologia da viola caipira e ao artigo Os significados de caipira, publicado na revista Tempo Social, do Departamento de Sociologia da USP. “Antonio Guerra realizou uma reconstrução histórica e sociológica do desenvolvimento da música caipira, centrada nos usos musicais do instrumento e em suas significações simbólicas, e também analisou manifestações contemporâneas e movimentos de recuperação da tradição caipira”, relata ao Jornal da USP o orientador do estudo.
Celebrações, música e viola no sítio
Guerra explica que a religiosidade sempre foi um dos traços mais evidentes na cultura do povo brasileiro e era durante as celebrações religiosas que havia muita fartura alimentar, cantoria e reunião dos sitiantes. “Tanto os ritos religiosos quanto as atividades laborais possuíam um caráter ritualístico na sociedade caipira, onde a música se fazia presente. No final do labor, o dono da casa oferecia a ‘janta’ e a cachaça, regada a cantoria acompanhada pela viola e outros instrumentos musicais com a sanfona. “Nesse processo de permanência e transformações a viola tornou-se importante elemento na sociabilidade dos bairros rurais, através das cantorias, cantigas de roda, cantos de trabalho, rezas, danças e festas”, diz o sociólogo.
E hoje, ainda que majoritariamente tocada nas cidades, a viola está vinculada à cultura caipira, suas tradições e imaginários. “A magia da viola caipira se encontra sobretudo na memória coletiva de um antigo mundo rural, que se faz substrato das práticas dos violeiros e violeiras contemporâneos”, diz.
Depoimentos de violeiros
Nas entrevistas com violeiros e violeiras, Guerra verificou a importância da cultura caipira na construção da identidade deles e os identificou como herdeiros de uma matriz cultural caipira a partir das experiências que vivenciaram entre o campo e a cidade. Alguns carregam a identidade caipira desde sua infância por influência decisiva do meio em que foram criados.
Bruno Sanches
Outros se identificam retroativamente com tal matriz cultural em uma fase tardia. É o caso de Bruno Sanches, violeiro e mestre em Musicologia pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Ele nasceu na zona rural e, aos quatro anos de idade, se mudou para o município de Regente Feijó (SP), a 15 minutos de Presidente Prudentes (SP), o principal polo econômico, educacional, hospitalar e cultural da região Oeste Paulista.
Em seu depoimento, Sanches disse que viveu no limiar entre o urbano e o rural porque em Regente Feijó, apesar de ter infraestrutura urbana, a vida de sua família era completamente permeada por hábitos caipiras. Eles faziam festas nos dias de santos, tinha cavalos e carroças pelas ruas, galinhas no fundo das casas e leite de vaca tirada e vendida por um vizinho.
Ele conta que, na adolescência, período em que construía sua identidade, tinha o desejo de desassociar-se das referências rurais. Estudou música, e só foi se reconectar com suas origens caipiras quando iniciou sua vida acadêmica na USP, época em que passou a refletir sobre sua identidade.
O violeiro disse que começou a perceber que os traços sinônimos de urbanidade – a erudição musical e escolar que era voltada para o repertório clássico de tradição europeia – não faziam dele um ser urbano, mas um suburbano escolarizado. “Essa percepção ficou mais clara quando iniciei meus estudos com a viola caipira e fiz pesquisa de campo na cidade de Itapetininga”, diz Sanches. Na cidade, “a aproximação com os caipiras que cultivavam sua cultura com orgulho, a facilidade que eles tinham em transitar entre os ambientes rurais e urbanos e o valor dado aos instrumentos musicais me fizeram olhar para minha própria história e perceber melhor o entorno em que cresci e fui criado”, avalia.
Adriana Farias
Adriana Farias nasceu no bairro do Ipiranga, na capital paulista, em 1976, mas desde criança gostava de música caipira, por considerar que era herança de suas origens familiares interioranas. “Sou menina que nasceu e foi criada no asfalto, mas habita uma alma antiga dentro de mim, que está muito ligada à história da roça, da terra, dos animais, da tropa e tudo mais.”
Embora Adriana se destaque como um dos principais nomes da viola contemporânea, ela ressaltou em seu depoimento problemas relacionados a gênero que as mulheres enfrentam no meio artístico. “Eu gosto muito de ser chamada para uma festa não porque eu sou mulher, mas porque eu toco bem, porque eu faço bem o que eu faço… Chegaram a ponto de perguntarem com que roupa eu iria me apresentar, de shortinho ou saia?… meu filho, veja bem, se você quer isso, você precisa de uma modelo, manequim, você não precisa de uma violeira, né?”
Depois da morte de uma das maiores violeiras brasileiras, Inezita Barroso, em 2015, Adriana assumiu a apresentação do programa televisivo Viola Minha Viola, que celebra a música caipira e valoriza a cultura do homem do campo.
Almir Sater
Almir Eduardo Melke Sater é violeiro, cantor, compositor, ator e instrumentista, bastante conhecido no meio artístico brasileiro. Em seu depoimento, Guerra verificou distintas relações estabelecidas com a cultura caipira. Em um determinado momento, ele se reconheceu caipira por ter nascido e crescido em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e ter estabelecido relação próxima com o meio rural desde a infância, mas relativizou sua identidade caipira em razão da sua sociabilização urbana. “Não sou caipira. Caipira é o cara que nasceu no mato, que mora no mato. Eu passei pelo universo caipira, pelo mundo caipira e fui feliz. Pode me chamar de caipira também; para mim é um elogio”, disse.
De fato, a família de Almir Sater, apesar de viver no Mato Grosso do Sul, estava vinculada aos serviços oferecidos nas cidades. Seu pai era contador e tinha uma padaria. “Meus tios tinham uma fazenda pertinho assim… Então esse contato com esse universo do interior, do campo, dos peões, eu sempre gostei muito disso.”
Em outro momento da entrevista, Sater demonstrou relutância em se vincular à identidade caipira por não fazer uma música nos moldes propriamente das duplas sertanejas raiz: “Eu não sou caipira, eu não sei tocar música caipira. Mas a minha influência vem da base caipira, da música base que é de viola.”
Valorização
Segundo Luiz Antonio Guerra, a partir da década de 1990, houve um crescimento no número de violeiros e violeiras em todo o País que passaram a utilizar a viola como instrumento para explorar variadas vertentes musicais. “Seja qual for o uso artístico dado a esse instrumento musical, presenciamos a própria valorização das tradições caipiras, caminho que representa um resgate individual das origens rurais familiares e reconhecimento da cultura caipira como parte constituinte de sua identidade”, conclui.
A pesquisa sobre a cultura caipira ganhou várias premiações: Prêmio Capes 2022, de melhor tese em Sociologia do Brasil; Prêmio Destaque USP 2022, de melhor tese em Ciências Humanas da USP; e o Prêmio Sílvio Romero do CNFCP-Iphan, como melhor trabalho em folclore e cultura popular.