Demóstenes Torres
Michel de Montaigne nasceu na França há quase meio milênio, foi magistrado e político, mas passou para a história como autor dos “Ensaios”, três volumes de sabedoria. Toda vez que os leio, destaco trechos inesquecíveis. Lula da Silva (PT) poderia se dar esse prazer, o de apreciar Montaigne, para discernir palanque de Presidência da República.
“Qual é o discurso da direita no mundo inteiro?”, perguntou Lula em entrevista na Rede TV nesta semana. “Pátria amada, costumes e religião”, respondeu a si próprio. “O que temos que construir?”, quis saber o presidente. Antes de alguém enumerar as milhares de obras “que temos que construir” com urgência, Lula disse que “os setores progressistas e democráticos da sociedade precisam se preparar para construir uma narrativa pra desmontar esse discurso atrasado”. Em vez de iniciativas para se montar indústria avançada, a prioridade é “desmontar discurso atrasado”.
Caso sua numerosa equipe de transição tivesse absorvido o pensamento de Montaigne, o preparo seria melhor para assessorar o presidente. É uma turma bem-intencionada, porém… “É frequente vermos as boas intenções, quando mal orientadas, provocarem os piores resultados”, filosofa Montaigne. Conselheiro petista adequado seria Lenine, pois “mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, a vida não para”, conforme canta em “Paciência”.
Muita calma nesta era. Se o presidente lesse Montaigne e ouvisse Lenine (o compositor, não o líder dos bolcheviques), teríamos o Lulinha Paz e Amor. Pós-pleito, ninguém quer saber qual o discurso da direita ou da esquerda. O que a gente espera e esperam da gente é, parafraseando Lenine, “um pouco mais de paciência”.
A região de Bordeaux, onde Montaigne foi prefeito por dois mandatos, vivia conturbada, com guerra entre a Igreja de Roma e os protestantes. O ensaísta católico era amigo de Henrique III, o calvinista rei de Navarra. Em vez de rusga religiosa, no auge do conflito, com paciência, intensificou a relação. No fim da vida de Montaigne, seu parça virou Henrique IV, Rei da França. Detalhe: o Bom Rei Henrique, como era chamado, já estava convertido e obediente ao Papa. Montaigne havia conseguido. O que alguém no poder consegue com briga? Brigar até mais não poder.
“Nosso ser é um aglomerado de qualidades que são ao mesmo tempo defeitos”, escreveu Montaigne: “Mesmo a crueldade, esse vício antinatural, habita em nós, pois paralelamente à compaixão experimentamos uma volúpia agridoce, e doentia, ao espetáculo do sofrimento alheio”. O sofrimento, momentaneamente alheio, logo estará no lombo de quem mandou dar. Fundo de poço de político tem elevador. Hoje está no calabouço, amanhã no palácio. Ocorreu com Lula, Winston Churchill, Fidel Castro, Nelson Mandela e o citado Montaigne.
Na posse de Aloizio Mercadante no BNDES, novo golaço seu, Lula afirmou que “esse país não pode continuar sendo governado por uma parcela da sociedade…”. Maravilha!, exclamaria o Professor Raimundo. Aí, na hora de tirar o 10, completou como um Sandoval Quaresma populista: “… tem que ser governado para a maioria”. Tava indo tão bem… Tem de ser governado para todos. A maioria digitou o 13, mas com mísero 1,8% à frente do 22. Se 1% do eleitorado tivesse mudado de camisa, adeus. Ou seja: Lula foi eleito pelos milionários, também. Pesquisa nacional do instituto Quaest, em dezembro de 2022, revelou que, daqueles com renda familiar de até 2 salários mínimos, apenas 43% escolheram Lula e 29% sequer foram às urnas. Os menos pobres um pouco, com renda familiar de 2 a 5 salários mínimos, preferiram Jair Bolsonaro: 40% x 38%. Portanto, se dependesse exclusivamente de CDE, Lula estaria nalgum canto chorando a derrota. A classe média alta e os ricos foram fundamentais na eleição de Lula. E são brasileiros, consomem, trabalham, geram empregos. A fúria contra eles é tão cega quanto os cotovelos pelos quais o presidente tem falado sobre economia. CDE, sim; OCDE, idem.
Lula triunfou com a pauta do desarmamento, que repete à exaustão. Primeiro, precisa desarmar os espíritos, tirar as metralhadoras das mãos dos seus, desmuniciar as pistolas de sua bancada, que os tanques sejam só os de peixes, que artilharia se restrinja aos goleadores do futebol. O presidente foi beneficiário da paciência de seu público, que esperou durante 16 anos para o eleger novamente. Agora, quem precisa ter paciência é ele.
As gestões Lula 1 e 2 usaram o slogan “Brasil, um país de todos” e a Lula 3 é “União e reconstrução”. Um país de todos os petistas? União de esquerda? Reconstruir o lulismo? Experiente, Lula deve reconhecer que se trata de descomunal falha política. Agregador de Pesquisas do Poder 360 e pesquisa PoderData mostraram nesta terça, 7.fev, que Lula 1 terminou o 1º mês com 7% de ruim/péssimo. E se livrou do Mensalão. Lula 2 encerrou janeiro de 2007 com o dobro de rejeição e ainda fez a sucessora. Lula 3 fechou com 500% a mais que em 2003 em clima de GreNal, BaVi, Fla x Flu, Corinthians x Palmeiras, Atlético x Cruzeiro, Goiás x Vila, Paysandu x Remo. A quem interessa esse jogo? Não é ao Brasil.
A realidade do País dispensa o Lula do confronto e requer o Lulinha Paz e Amor que chamou Geraldo Alckmin para vice e corretamente o colocou no Desenvolvimento, José Múcio na Defesa, Flávio Dino na Justiça, Rui Costa na Casa Civil, Alexandre Padilha nas Relações Institucionais, Wellington Dias no Social, 9 ministérios para União Brasil, MDB e PSD. Marina Silva e Simone Tebet foram adversárias e estão sob seu guarda-chuva. Arthur Lira e Rodrigo Pacheco conseguiram chefiar a Câmara e o Senado graças a Jair Bolsonaro e Lula teve a sabedoria de os atrair e apoiá-los na reeleição.
Cadê esse Lula apaziguador para conversar com os militares? Não se conquista caserna chutando coturnos assim como não se cura dor na coluna catando coquinhos. Exército, Marinha e Aeronáutica defendem as cores do Brasil, não o vermelho do PT, o verde da família Bragança ou o amarelo dos Habsburgo. Cadê o Lulinha Paz e Amor para fazer diferente de Bolsonaro, que ia ao exterior falar mal das urnas e se reunir com párias extremistas de Hungria e Estados Unidos? Está criticando a independência do Banco Central e, como disse à RedeTV, falando “com o chanceler Olaf Scholz [da Alemanha], falei com o [presidente Emmanoel] Macron [da França] e vou falar com todos os líderes”. Falar bem do Brasil? Não, mal da direita.
Lula precisa da humildade que os vencedores demonstram para se reaproximar da pátria amada inteira, dos costumes, das religiões, dos quartéis, dos agropecuaristas. Três de seus ministros votaram pelo impeachment de Dilma. Quinze deles são nitidamente de direita. O que há de errado no trio e nos quinze? Como na entrevista de Lula, eu pergunto, eu respondo: nada.
No fim de 2018, 426 anos após a morte do grande pensador, arqueólogos descobriram um caixão de madeira no fundo de uma igreja em Bordeaux. Na tampa, o nome Montaigne escrito em marrom. Dentro, “um esqueleto bem preservado e um crânio com quase todos os dentes”. O projeto de identificação para tirar dúvidas deveria checar se os rins tiveram cálculo (Montaigne tinha problemas renais) e se houve coração em meio à ossada (o do ensaísta fora guardado em casa a pedido da viúva). Lula deve ler Montaigne, inspirar-se em suas frases e observar seu fim, que é o de 100% de nós. Não importa o que fomos, no futuro seremos reconhecidos pela pedra nos rins e a ausência de órgão muscular situado na cavidade torácica. Um Lulinha Paz e Amor tiraria todas as pedras no caminho de sua vida tão fatigada e guardaria adversários e aliados no imenso coração.